Shion, a Algoz

Jonas sempre soube o que Shion era, mesmo com toda aquela confusão de uma mente adolescente. Shion era um demônio, e ele a amava mesmo assim.

Existem centenas de espécies de demônios, nenhum deles é exatamente igual ao outro, mas em uma coisa todos eles são iguais: nem sempre foram demônios. Por exemplo, os primeiros demônios eram anjos caídos, renegados. Lúcifer era um anjo, dizem que o mais belo de todo o paraíso. Mas não estamos aqui para falar de espécies de demônios, na verdade, vamos falar só de uma: os demônios da casta Algoz.

A casta Algoz tem três patamares: a Alta Classe que é constituída apenas pela própria Morte, um arcanjo que não é nem renegado nem caído, mas tomou para si a responsabilidade de ceifar vidas; a Média Classe que é formada pelos anjos caídos menores, geralmente serafins e querubins, ou seres místicos que estão acima dos humanos; e por fim a Menor Classe: os humanos. Para um humano chegar ao nível de um Algoz é preciso ser escolhido por uma Classe maior. E para todos é necessário que abdique sentimentos e laços da antiga existência, só assim serão capazes de cumprir com a tarefa de colher almas e vidas.

Para Shion não foi diferente, assim como todo demônio que já foi humano, ela teve uma vida violenta que terminou violentamente, desceu ao inferno e lá foi torturada por mil anos para em seguida torturar por mais mil. Ela era um demônio qualquer, uma torturadora, mas só até ser escolhida por um Algoz da Média Classe.

A pior parte de se tornar um Algoz é abdicar dos sentimentos. O ser escolhido para essa espécie demoníaca deve arrancar o próprio coração meio milhar de vezes, porque afinal seu corpo se regenera no inferno. Mas quando se arranca o coração tantas vezes, no entanto, ele atrofia chegando ao ponto de não crescer outra vez. Assim foi com Shion, seu coração cheio de ódio e tristeza nasceu no peito depois de uma milésima centésima sétima vez murcho e endurecido, como um caroço de abacate.

E então chega a hora de perder laços com a antiga existência. O candidato a Algoz vê, dia após dia, todos os seres que amou ou por quem teve qualquer afeição em vida morrer. Não dura mais que duas centenas de anos, e as mortes sempre acontecem de forma mais lenta e cruel. O candidato é incapaz de interferir. Chega uma hora que as mortes param de incomodar, e o candidato está pronto para ser um Algoz.

Voltamos então a Jonas e a como ele descobriu sobre Shion ser um demônio.

Não há explicação para o fato, é impossível na verdade tentar explicar algo que acontece sem motivo e nem razão. O que aconteceu foi: ele entrou na sala de aula naquela fria manhã de fevereiro e a viu, sentada como se fosse apenas mais uma aluna. Ele não ficou exatamente incomodado com ela, mas quis conhecê-la, quis falar com ela, quis abraçá-la e dizer que as coisas podiam melhorar, porque afinal de contas, a expressão que Shion trazia no rosto era a mais triste que existe.

Shion sempre esteve lá, mas ninguém nunca pareceu notá-la a não ser o jovem Jonas. A garota que na verdade é um Algoz se sentava em uma carteira e ficava a aula toda debruçada sobre os braços, como se chorasse.

Levou muito tempo para que alguém falasse com ela, exatamente um ano e sete meses. Jonas, nosso jovem protagonista, tomou coragem certo dia e cumprimentou Shion. A garota-Algoz sorriu e desde então eles começaram a se falar. Andavam para todos os lados juntos, eram os melhores amigos.

Jonas que era um jovem introvertido e de poucos amigos descobriu que em Shion podia confiar até os mais profundos segredos. E Shion, por sua vez, contava todas as coisas de sua antiga vida, que por mais dura que tivesse sido sua iniciação à Algoz não foi capaz de esquecer os laços e sentimentos que tivera dentro de si, mesmo quando torturava aquelas pessoas no inferno há milhões de anos atrás ela ainda se lembrava do rosto de seu irmão mais novo a sorrir para ela.

— Eu sou um demônio. — confidenciou a Algoz certa manhã.

Por mais louco que fosse a informação, Jonas não riu ou se mostrou impressionado, ele apenas sorriu com o canto da boca e disse:

— Eu sei.

— Como?

— Eu só sei. Não sei como, mas sei. Sempre soube.

E a amizade continuou por muito tempo ainda. No último ano da escola, no entanto, Jonas se apaixonou por uma garota linda de olhos amendoados e cabelos castanhos. Ele se apaixonou de uma forma tão intensa que mal conseguia olhar para outras garotas, mal conseguia pensar em outras garotas, mas mesmo assim, mal conseguia chegar até ela.

Shion soube sobre a garota por quem seu amigo Jonas estava apaixonado, e sua expressão triste e solitária só ficou ainda mais triste e solitária. Ela não disse o que seu amigo deveria fazer, não lhe deu dicas. Mas outras pessoas deram, e assim Jonas foi até a garota e se declarou.

Uma coisa estranha são essas paixões que chegam arrebatadoras e que parecem ter um futuro formidável pela frente, no entanto, o que Jonas encontrou foi indiferença. Por mais que amasse a garota, ela não dava a mínima para ele. E, já que sua vida já não ia muito bem, ele tentou se matar.

Quando estava no hospital com a sonda narina adentro, Jonas a viu. Não a garota, a Algoz.

Shion pegou em sua mão e ficou ali durante todo o procedimento. Pessoas vinham e saíam a todo o momento, mas a Algoz não abandonou Jonas nem por um segundo. Jonas foi para a casa na manhã seguinte e para a escola um dia depois. Encontrou Shion, mas eles não comentaram sobre o ocorrido e continuaram a amizade por mais poucos meses.

Nas férias de Julho os dois não se viram, mas quando as aulas voltaram Jonas encontrou Shion com a expressão triste ainda mais triste. Poucos dias mais tarde a Algoz trouxe consigo uma algibeira preta de veludo com algo dentro, entregou para Jonas e disse:

— Eu não posso mais ficar com isso.

— O que é? — perguntou Jonas depois que viu o conteúdo da algibeira: uma coisa pequena, murcha e endurecida que parecia um caroço de abacate.

— É uma semente. — ela mentiu. — Eu estou aqui, Jonas, desde o começo, para levá-lo. Eu estive esse tempo todo esperando para ceifar sua vida, mas na hora eu não fui capaz. Eu não quero levá-lo, você não precisa morrer.

— E por que você acha que eu não preciso morrer?

— Porque você pensa que não serve pra nada, que é completamente inútil, mas você é uma boa pessoa e vai ser grande um dia. E esse dia só vai chegar se você ficar vivo, e por isso eu não pude levá-lo.

— Mas eu queria morrer... — olhou ao redor, meio receoso. — E ainda quero.

— Por quê?

— Porque eu não gosto da minha vida, eu não gosto de mim. Eu me odeio. Eu estaria melhor morto. Aliás, todo mundo estaria melhor se eu estivesse morto.

— Você não sabe o que é estar morto, mas eu sei. Você vai viver, e eu vou estar sempre por perto, te observando. Mas você não vai mais me ver.

— Isso é um adeus?

— Nunca deveria ter existido um "olá".

E assim Shion, a Algoz, desapareceu. Ela nunca mais voltou. Jonas nunca mais a viu, mas ela estava lá, sempre por perto, sempre observando, sempre segurando a mão dele quando necessário. E, se por acaso as coisas não estivessem muito bem, Jonas apertava firme a semente entre seus dedos, a semente que ganhara de Shion, e tudo parecia melhorar.

Porque a semente na algibeira era o seu amuleto, era a sua melhor amiga.

E mesmo que estivesse sozinho, não estava sozinho.

Mesmo que estivesse com medo, não haveria perigo.

Mesmo que estivesse de frente para a morte certa, não morreria. Afinal, ele tinha o coração de um Algoz dentro da algibeira que trazia no bolso. Tudo estava bem. Tudo sempre estaria bem.

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