
O Bosque Solidão
Nesta rua nesta rua tem um bosque
Que se chama que se chama Solidão.
Dentro dele dentro dele mora um Anjo
Que roubou que roubou meu coração.
A avó terminou a cantiga e olhou para seu neto deitado na cama pronto para dormir. O menino já tinha ouvido a avó cantar a cantiga um milhão de vezes, mas em todas elas sentia aquele arrepio estranho percorrer seu corpo.
— Você quer saber de onde vem essa cantiga? – perguntou a avó.
Ele apenas balançou a cabeça, ansioso.
— O nome dela era Jessie. – disse com um sorriso distante. — Ela morava num lugar lindo, não havia lugar melhor para uma criança crescer. E havia um bosque nos fundos de sua casa, um bosque igual ao que tem aqui na rua. Mas aquele tinha um nome, aquele era o bosque Solidão.
***
Jessie era uma garota muito sozinha porque seus pais viviam no trabalho e a deixavam aos cuidados da babá que mal lhe dava atenção, o que deixou de ser um problema quando certo dia um amigo especial apareceu no quintal. Pela roseira que delimitava o bosque veio o Anjo, cuja pele era tão clara quanto leite e não possuía um arranhão. Seus cabelos eram loiros e curtos, o rosto completamente imberbe, os olhos prateados causaram em Jessie uma sensação única de segurança.
No primeiro dia na escola Jessie contou sobre o Anjo para as outras crianças que acabaram rindo dela e chamando de mentirosa. Depois disso ela não teve mais com quem conversar a não ser com Anjo, seu único e melhor amigo.
— Eu te amo. – ela dizia sinceramente e os olhos prateados do Anjo brilhavam.
— Eu também te amo pequena.
Mas com os anos Jessie deixou de amá-lo. Cada vez mais o Anjo se tornava menos presente, menos palpável, menos real. Eles já não conversavam mais, se viam de relance e não eram mais amigos. Aos 14 anos fizeram com que ela esquecesse o Anjo, mas ele ainda a amava. Foi nessa época que surgiu Joseph, o primeiro amor. Os dois eram grandes amigos e conversavam sobre tudo, até que numa tarde eles se beijaram depois de um passeio no bosque. O Anjo viu tudo e percebeu que não possuía mais um coração, que depois de todo aquele tempo sem sentir o amor de Jessie seu coração virou areia, e agora ela só poderia amá-lo se ele tivesse outro coração. E foi então que a ideia surgiu e Joseph nunca mais foi visto vivo.
Naquele mesmo dia Jessie voltou a ver o Anjo, ele apareceu em seu quintal no fim da tarde com um sorriso no rosto e um coração novo no peito.
— O que faz aqui? Eu pensei que você tinha ido embora para sempre?
— Eu nunca vou te abandonar, pequena.
— Eu já não sou pequena, Anjo.
— Você sempre será minha pequena.
Dias mais tarde o corpo de Joseph foi encontrado. O peito aberto sem o coração. O funeral foi triste, Jessie sofreu tanto que não saiu do quarto por um mês. Ao fim do qual o Anjo estava lá para enxugar suas lágrimas. Os dois se falaram por algum tempo, mas aos poucos Jessie esquecia Joseph e desta forma também o Anjo que com seu coração estava.
Jessie parou de amar Joseph e também o coração que o Anjo trazia no peito. Logo ele desapareceu outra vez. O próximo jovem a perder o coração foi Marcos. Jessie o conheceu na aula de natação e eles se beijaram na piscina, foi mágico. Marcos visitou Jessie duas ou três vezes e em uma delas o Anjo os viu. No mesmo dia o garoto desapareceu.
— Ele morreu. Disseram que algum animal comeu o coração dele. – lamentou-se Jessie quando o Anjo apareceu depois que descobriram o corpo de Marcos no bosque Solidão.
— Eu sinto muito que esteja triste, minha pequena. Odeio vê-la assim.
Mas com o tempo, assim como aconteceu com Joseph, Marcos foi sendo esquecido e consequentemente o Anjo que inconformado atacou o próximo rapaz assim que apareceu. Bill era um jovem atlético que estudava com Jessie desde o primário, ele se aproximou aos poucos depois da morte de Marcos e enquanto consolava a garota, acabou se apaixonando. Ele acompanhou Jessie para casa num dia e resolveu dar-lhe um beijo antes que ela entrasse. Assim que seus lábios se tocaram, um grito furioso ecoou no bosque e o Anjo apareceu e arrastou Bill até o bosque com suas garras demoníacas. Jessie correu atrás gritando desesperada, mas quando chegou já era tarde demais. Bill estava com o peito aberto, havia sangue para todo lado, e o Anjo tinha uma ferida no peito que cicatrizava aos poucos. Ela podia vê-lo outra vez. Jessie via o Anjo e sentia algo por ele, mas estava longe de ser amor.
— Por que fez isso? – perguntou chorando ajoelhada ao corpo de Bill.
— Só eu te amo do jeito que você merece, Jessie. E eu quero que você me ame de volta.
— Quer que eu te ame matando as pessoas que eu amo?
— Não. Eu só precisava do coração deles. Você só pode me amar se eu tiver um coração.
— Não. Meu Deus, não. Deles? – As lágrimas começaram a cair. — Então foi você quem matou Joseph?
A cabeça do Anjo balançou confirmando.
— E Marcos?
Outra vez a cabeça confirmou.
O mundo pareceu girar rápido e Jessie perdeu o chão. Ela não podia acreditar, não queria. Doía muito pensar que os três únicos rapazes que ela amou estavam mortos exatamente por ela amá-los.
Ela deu as costas e começou a se afastar, mas o Anjo a segurou pelo ombro fazendo com que ela se desvencilhasse gritando:
— Não toque em mim. Não ouse tocar em mim.
— Não faça isso pequena, por favor.
— Para! Não me chama assim. Nunca mais. Nunca mais olhe para mim. Nunca mais pense em mim. Você me dá nojo.
— Não diga isso, pequena. Eu te amo.
Ela não aguentou mais ouvir daquelas palavras doentias. O Anjo não a amava; aquilo não era amor. Ele nem mesmo deveria existir, muito menos matar pessoas. E com medo, Jessie fugiu para bem longe e jurou esquecer tudo aquilo, toda aquela dor e conseguiu.
Muitos anos depois Jessie era uma nova pessoa e tinha uma vida maravilhosa ao lado de seu marido Thomas, mas assim que as meninas, Sam e Maggie, nasceram a família resolveu visitar os avós na antiga casa junto ao bosque Solidão e assim que chegaram o Anjo sentiu a presença de sua amada e agiu rapidamente.
A casa dormia quando o Anjo entrou e subiu as escadas para o quarto de hóspedes. As meninas Sam e Maggi dormiam serenamente no berço junto da cama do casal e o Anjo as tocou ternamente na testa. Depois olhou Jessie e sorriu, para Thomas lançou um olhar de ódio e inveja.
Tudo aconteceu muito rápido. Os pés de Thomas foram agarrados por fortes mãos e ele foi puxado da cama. Jessie acordou de um pulo ao ouvir os gritos do marido enquanto o Anjo o arrastava escada abaixo. Ela correu atrás deles aos gritos, despertando toda a vizinhança que preocupados chamaram a polícia.
Jessie corria por entre as altas árvores do bosque, mas o Anjo era mais rápido. Gritos desesperados eram ouvidos no bosque, e depois que o mais alto deles ecoou, fez-se silêncio. Jessie desabou no chão de terra e chorou. Thomas está morto, e chorou ainda mais. E enquanto chorava o Anjo se aproximou coberto em sangue. O buraco onde ele enfiara o coração de Thomas cicatrizava aos poucos. Trazia um sorriso plantado no rosto.
— Olhe para mim Jessie e diz que me ama.
A mulher levantou a cabeça e olhou em sua direção, mas não conseguia sentir nada de bom por ele. Ela sentia a presença do coração pulsante de seu marido, mas o amor que sentia por aquele pedaço de carne era insignificante perto do tamanho de seu ódio. O silêncio de Jessie cortou o Anjo tão profundamente quanto uma lâmina. Ela não conseguia falar, mas seu olhar se encarregou de mostrar toda sua repulsa e o Anjo compreendeu.
— Eu entendi. Agora eu entendi. Eu sou vazo e não é o coração deles que eu preciso para me preencher, Jessie, minha pequena, é o seu. Eu preciso roubar o seu coração.
E com um sorriso sereno ele avançou.
***
A velha senhora se silenciou.
O neto olhou para ela não compreendendo.
— Mas e o final?
— Esse é o final.
— Então Jessie morre? – perguntou indignado.
— De forma alguma. Ela vive para ver suas filhas crescerem e também seu primeiro netinho. O que aconteceu foi que, assim que o Anjo avançou sobre Jessie para roubar-lhe o coração, os policias apareceram.
— E atiraram nele. – deduziu o garoto.
— Não. O Anjo é muito rápido, ele desapareceu num piscar de olhos. Chegaram a caçá-lo, mas não é fácil de encontrar alguém como ele. A Jessie, coitada, ficou com tanto medo que a levaram para um lugar seguro onde o Anjo não podia entrar.
— Mas e o Anjo?
— A única coisa que se sabe é que ele ainda está por aí. – contou e olhou pela janela do quarto, para a roseira no quintal dos fundos. — E que ele ainda é vazio. Ele ama Jessie e por isso não quer matá-la, mas se não houver outra solução, é o que ele vai fazer. Ele vai roubar seu coração.
E para tirar a tensão, a avó riu e disse que era hora de dormir.
Naquela mesma noite, quando a casa dormiu, inclusive a velha senhora Jéssica, alguém entrou e subiu as escadas silenciosamente. Não eram as filhas de Jéssica, Samantha ou Margaret, pois estavam as duas em um cruzeiro com seus maridos.
Assim que o invasor abriu a porta do quarto, Jéssica sentiu a presença do coração pulsante de alguém morto há muito tempo. Sorriu com a presença e sentiu o amor pelo qual o Anjo buscara todos aqueles anos. A velha abriu os olhos e o encarou.
— Eu esperava que você não viesse. – confessou Jessie.
— Eu queria não vir, mas não há outra solução. – murmurou o Anjo
— Você sabe que eu te amei, não sabe? Quando eu era criança. Não era o tipo de amor que você queria, mas era o máximo que eu podia te dar.
Sem o sorriso que trazia no início, o Anjo se aproximou de Jéssica.
Um grito de dor fez com que o pobre neto da senhora Jéssica acordasse. Assustado, levantou-se e foi em direção ao quarto da avó lutando contra todos os seus temores. Encontrou-a sozinha em frente ao espelho, ainda segurando a faca cravada no próprio peito.
Se eu roubei se eu roubei teu coração
É porque tu roubaste o meu também.
Se eu roubei se eu roubei teu coração
É porque é porque te quero bem.
Foram as últimas palavras da avó antes de morrer.
Morreu como um anjo.